quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Criancinhas

A DEVIDA COMÉDIA
Miguel Carvalho

Um dia destes, vão ser os paizinhos a ir parar ao hospital com um


pontapé e um murro das criancinhas no olho esquerdo



Criancinhas

A criancinha quer Playstation. A gente dá.

A criancinha quer estrangular o gato. A gente deixa.

A criancinha berra porque não quer comer a sopa. A gente elimina-a da ementa e acaba tudo em festim de chocolate.

A criancinha quer bife e batatas fritas. Hambúrgueres muitos. Pizzas, umas tantas. Coca-Colas, às litradas. A gente olha para o lado e ela incha.

A criancinha quer camisola adidas e ténis nike. A gente dá porque a criancinha tem tanto direito como os colegas da escola e é perigoso ser diferente.

A criancinha quer ficar a ver televisão até tarde. A gente senta-a ao nosso lado no sofá e passa-lhe o comando.

A criancinha desata num berreiro no restaurante. A gente faz de conta e o berreiro continua.

Entretanto, a criancinha cresce. Faz-se projecto de homem ou mulher.

Desperta.

É então que a criancinha, já mais crescida, começa a pedir mesada, semanada, diária. E gasta metade do orçamento familiar em saídas, roupa da moda, jantares e bares.

A criancinha já estuda. Às vezes passa de ano, outras nem por isso. Mas não se pode pressioná-la porque ela já tem uma vida stressante, de convívio em convívio e de noitada em noitada.

A criancinha cresce a ver Morangos com Açúcar, cheia de pinta e tal, e torna-se mais exigente com os papás. Agora, já não lhe basta que eles estejam por perto. Convém que se comecem a chegar à frente na mota, no popó e numas férias à maneira.

A criancinha, entregue aos seus desejos e sem referências, inicia o processo de independência meramente informal. A rebeldia é de trazer por casa. Responde torto aos papás, põe a avó em sentido, suja e não lava, come e não limpa, desarruma e não arruma, as tarefas domésticas são «uma seca».

Um dia, na escola, o professor dá-lhe um berro, tenta em cinco minutos pôr nos eixos a criancinha que os papás abandonaram à sua sorte, mimo e umbiguismo. A criancinha, já crescidinha, fica traumatizada. Sente-se vítima de violência verbal e etc e tal.

Em casa, faz queixinhas, lamenta-se, chora. Os papás, arrepiados com a violência sobre as criancinhas de que a televisão fala e na dúvida entre a conta de um eventual psiquiatra e o derreter do ordenado em folias de hipermercado, correm para a escola e espetam duas bofetadas bem dadas no professor «que não tem nada que se armar em paizinho, pois quem sabe do meu filho sou eu».

A criancinha cresce. Cresce e cresce. Aos 30 anos, ainda será criancinha, continuará a viver na casa dos papás, a levar a gorda fatia do salário deles. Provavelmente, não terá um emprego. «Mas ao menos não anda para aí a fazer porcarias».

Não é este um fiel retrato da realidade dos bairros sociais, das escolas em zonas problemáticas, das famílias no fio da navalha?

Pois não, bem sei. Estou apenas a antecipar-me. Um dia destes, vão ser os paizinhos a ir parar ao hospital com um pontapé e um murro das criancinhas no olho esquerdo. E então teremos muitos congressos e debates para nos entretermos.

Artigo publicado na revista VISÂO online

1 comentário:

Eloisa Cardoso disse...

Olá Miguel...

Sabe, sou brasileira, e no Brasil houve uma peça de teatro intitulada "A divina comédia humana"...
Lendo esse seu artigo, a única coisa que me ocorreu instantâneamente..., foi que o título deveria ser: "A terrível TRAGÉDIA humana"...
Sem sombra de dúvida que o sr. faz uma notória e clara descrição daquilo que são os pais (e não só!, são os tios, avós...), dos dias de hoje...( o que acho "lamentável" diga-se de passagem)
Engraçado é que eu tenho filhos de, digamos..., duas gerações diferentes..., tenho um casal com 32 e 31 anos, e uma caçula de 10 anos...
Os dois primeiros, foram criados de uma maneira em que eu dizia aos professores que:- Se os meus filhos os desrespeitarem, tens a minha autorização para "meter a mão na cara deles"...
Isso nunca foi necessário..., porque eles foram ensinados (e aprenderam em tenra idade), que os "mais velhos" e educadores eram (e tinham que ser!)merecedores de RESPEITO, porque a escola era, digamos, "a extensão" das nossas casas...
Então "inventaram" os "direitos das crianças"...(assim como os "direitos humanos", dos adolescentes..., dos pacientes, etc...etc...etc...), nada contra!!!, só que existe uma "confusão" muito grande em "ter direito" e "abusar" deles...
Instalou-se então o "CAOS" geral, porque esqueceram-se de "indicar" que "o direito de/do outro/a começa onde termina o meu e vice versa...
Ou seja..., as pessoas não teem visão, não exergam ou "sê" enxergam..., acabam por estrapolar...
Com isso, perdeu-se o "respeito" (aquele que se tinha "antigamente")..., quando nós (pais), não saíamos ou chegávamos a casa sem ir pedir a benção (acompanhada de um beijo) aos nossos pais..., quando estar em sala de aula era uma coisa quase que "sagrada" e professores e diretores eram respeitados porque representavam os nossos pais (e portanto mereciam o mesmo tratamento e respeito que tínhamos para com eles)
Como é que uma criança ou adolescente "HOJE" em dia vai "respeitar" os educadores se não teem respeito para com os próprios pais???!!!
É uma pena..., e é com muita tristeza que "vi" neste teu artigo a "imagem" (como um "filme", como um "slide") a passar pela minha cabeça, do que realmente acontece nos dias de hoje...,pois fizeste uma representação exata dos filhos de hoje em dia...( e pais também!)
Fatalmente, o que irá acontecer (e já acontece!!!), nos dias que se seguem...é mesmo o que dizes...
Nos meus dois filhos da "1ª geração"..., ensinei-os a honrar e principalmente "respeitar" seus educadores (entre outras coisas), jamais dei um "tapa" se quer em um filho meu... Com a caçula não é diferente...
Há pouco tempo, recebi uma mensagem da minha filha mais velha, que vai fazer 32 anos em Abril...
Hoje ela tem tres filhotas (12,5 e 2 aninhos), e disse-me em sua mensagem:- " Mamãe..., sê eu conseguir ser para as minhas filhas a milésima parte do que foi para mim e meu irmão..., tenho certeza de que serei uma grande mãe..."
Portanto, "passar a mão na cabecinha"..., não educa ninguém, e mais importante que isso!!!, NÃO PREPARA NINGUÉM PARA A VIDA"..., ao contrário "CRIA MONSTROS"..., infelizmente...

Parabéns pelo seu artigo, que acredito "DEVERIA SER IMENSAMENTE DIVULGADO"..., pelo menos para que "alguns" pais..."parassem para pensar" no que estão á fazer com os vossos "filhos"..., quem sabe aí..."mudar de atitude"..., quem sabe aí..."salvar os vossos filhos" (se "tempo" ainda houver...)

Beijo no coração Miguel.

Eloisa Cardoso.